quarta-feira, 12 de janeiro de 2011

"A dor é inevitável. Sofrer é opcional" (Haruki Murakami)

Haruki Murakami

Muitas vezes a gente tende a ignorar alguns singelos sinais que aparecem ao longo da vida. Coincidência ou não, eles surgem em diferentes dimensões, em diferentes esferas - mas nos momentos exatos.

Tendo acabado a leitura de O grande Gatsby, recebi de um amigo querido a indicação do livro Do que eu falo quando eu falo em corrida, de Haruki Murakami (ed. Alfaguara). Comecei a leitura por gostar muito de correr, mas confesso que não coloquei muita expectativa, pois andava mais no clima de ler literatura. Fui surpreendida então por dois fatores: o primeiro é que Murakami é um romancista japonês de prestígio, lido no mundo todo (adoro essas descobertas). E o segundo é que ele traduziu - justamente - O grande Gatsby para o japonês.

O livro então resulta num registro pra lá de sensível e filosófico sobre as inúmeras relações que há entre correr e escrever ficção. Contando como se tornou um corredor e um escritor, o autor reflete sobre motivação, sobre o processo de pensamento de quando se corre e quando se escreve, sobre limites... Mas sobretudo trata da arte de ficar sozinho e da sua relação com o tempo - seja o tempo dos treinos, das provas, seja o tempo da sua própria existência. E falando em existência, Murakami nos ensina a contemplar tanto o que está ao alcance dos olhos - como quando descreve o que observa ao longo das corridas - como o que não é possível ver, mas sentir: o nosso quinhão humano, a nossa parte dentro de um ciclo, os nossos próprios ciclos, a noção que adquirimos da nossa própria fluidez. Nesse sentido, o autor nos revela que os atos de correr e de escrever romances portam duas forças antagônicas e complementares: assim como o corredor pode por vezes desfrutar de uma sensação de poder - e o cruzamento de uma linha de chegada pode traduzir isso -, o escritor pode por vezes brincar de deus, uma vez que o domínio da palavra e da narrativa lhe permite criar quantos mundos desejar. Mas o outro lado também mostra que, assim como o corredor pode por vezes se sentir falível, sabendo que não tem pleno controle sobre o corpo e sabendo que esse corpo perece, o escritor lida com a matéria humana, ambivalente e conflituosa, logo, imperfeita.

E é cultivando com muita concentração e perseverança essas duas práticas - uma que mantém o corpo são e a outra que assim mantém a mente - que Haruki Murakami também nos mostra que, dentro da lógica do tempo, há uma construção muito bonita da noção de individualidade, dado que, para desenvolvê-las com competência, é preciso gostar de estar sozinho. Estando sozinho é possível ouvir os próprios pensamentos, entender o tempo e consequentemente amadurecer, transformando a própria realidade. E uma dessas transformações incríveis pela qual passou nosso autor foi abrir mão do hábito de fumar 60 cigarros por dia.

Desse livro, ficou para mim uma série de reflexões, mas, de acordo com a leitura que fiz, existe uma que poderia resumir a obra: correr e escrever é sobretudo lidar com o invisível: com os tempos, com a paciência, com os processos, com os resultados inesperados, com o deleite e com a dor.

***

Abaixo seguem alguns trechos para degustação:

"Acho que a coisa mais afortunada de todas foi que nasci com um corpo forte e saudável." (p. 39)


"Tenho apenas alguns motivos para continuar a correr, e um caminhão deles para desistir. Tudo que tenho a fazer é manter esses poucos motivos muito bem-cuidados." (p. 66)

"No meio desse fluir, tenho consciência de mim mesmo como uma minúscula peça no gigantesco mosaico da natureza. Sou apenas um fenômeno natural substituível, como a água do rio que corre sob a ponte na direção do mar" (p. 81)

"Quando paramos para escrever um romance, quando usamos a escrita para criar uma história, queiramos ou não, um tipo de toxina que jaz nas profundezas de toda a humanidade sobe à superfície" (p. 85)

"Correr adentrara o território da metafísica. Primeiro vinha a ação de correr, e acompanhando-a estava essa entidade conhecida como eu. Corro, logo existo." (p. 99)

"Olho para o céu, perguntando-me se dá para entrever alguma bondade ali, mas não. Tudo que vejo são as indiferentes nuvens de verão vagando através do Pacífico. E elas não têm nada a me dizer. Nuvens são sempre taciturnas. Provavelmente, eu não deveria estar olhando para elas. Deveria era estar olhando dentro de mim. Como que fitando um poço fundo. Posso ver bondade ali dentro? Não, tudo que vejo é minha própria natureza." (p. 128)

"Um dos privilégios concedidos àqueles que evitaram morrer jovens é o direito abençoado de ficarem velhos." (p. 105)

3 comentários:

  1. tenho em casa o Kafka à Beira mar para ler, mas só lhe devo pegar em Março.


    CSD

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  2. Que legal! É uma relação que, realmente, tem tudo a ver. Nunca tinha pensado por este prisma. E é verdade, há um caminhão de motivos para não correr, mas depois dos 10 minutos iniciais, é preciso um caminhão para parar! O lance de estar só consigo mesmo e a sensação de liberdade é impagável.

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  3. me identifiquei muito. preciso ler esse livro :)

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