domingo, 25 de dezembro de 2011

Maré alta, maré mansa

A moça da praia,
A ver navios,
Espera o subir da maré
Na época da lua cheia
E enche seu coração de júbilo.

quarta-feira, 7 de dezembro de 2011

À deriva


Chega a meus pés
Trazida por uma pequena vaga escumosa
A garrafa com a mensagem dentro.

Eu sozinha, na beira da praia
Numa noite fresca e enluarada,
Saco resoluta a rolha que prende
No fundo do vidro
Todas as lágrimas do oceano.

segunda-feira, 5 de dezembro de 2011

Confissões de mulherzinha pré-30



Tou cada vez mais perto dos 30. Depois de uma crise daquelas - não a dos 30, mas a dos “pré-30”, que talvez seja bem mais severa, me parece que ela está passando e, vejam só, até estou gostando da ideia de, daqui a pouco, fazer 30.


O que me incomoda - aliás, o que SEMPRE me incomodou - é meu arzinho de menina, que me deixa mais perto dos 20 do que da outra ponta da década, mesmo a essa altura do campeonato. As mais velhas acham isso o máximo, mas o problema é a falta de credibilidade que essa cara me dá, apagando sem piedade alguma experiência que, sim, eu já acumulo. Queridas senhoras, essa carinha tem currículo, um portfolio de alegrias, frustrações, de fichas que caíram, de revisões, de lágrimas secas pelo tempo, de realizações, de abacaxis descascados, de mancadas, de determinações e de decisões.


Além da cara, há dois outros aspectos: a irreverência e a necessidade do movimento. Por que os adultos entendem a idade adulta como o momento de estagnar? Parece que o movimento de vida é próprio dos adolescentes, e basta alguém crescido aparecer com um corte de cabelo diferente, uma tatuagem, um hábito inesperado pra ouvir o coro dos anciãos dizendo “pronto, adolesceu”, quando na verdade é uma característica inerente daqueles que veem que a vida merece ser desfrutada a cada flor que se abre. E elas se abrem, cada uma, apenas uma vez.


E como ser irreverente deixando de lado a meninice? Por que o adulto deve gostar das cores neutras, ler livros burocráticos, fazer atividades programadas, seguir modelos que não foram nem ele que escolheu? Por que a tentativa e a experimentação é vista como própria das crianças e ponto final? Por que a fuga de determinados padrões acaba ficando atrelada a um certo “deboche” da vida? Não é por essa visão que vou deixar de levar o trabalho a sério, de pagar minhas contas, de planejar um futuro, de desejar um filho.


E como ser irreverente, manter o movimento da vida e ser elegante, altiva, charmosa - Mulher - sem pender pra uma artificialidade que, em mim, ficaria ridícula e impossível de cultivar? O ar adolescente é próprio deles e cada idade tem em si sua beleza. E é difícil encontrar um denominador-comum perto desses míticos 30 anos. Talvez os 40 me reservem a resposta para todas essas perguntas. Ou não?

segunda-feira, 28 de novembro de 2011

Um banquinho com pezinho e um violão





Não sei se botei no show do Chico Buarque a expectativa alimentada pela experiência com o concerto do João Donato no Theatro São Pedro onde ele, já bem velhinho, bonachão, de camisa e bonezinho surrados, tocava no Steinway suas canções de garoto, fazendo deliciosas confissões a uma plateia intimista, saudosa talvez de um tempo que não tenha vivido, como eu.


E chegamos, eu e meu pai, ao teatro do Sesi, para ver o Chico. E qual não foi minha surpresa ao observar que seu público, que aguardava na recepção regada a espumante à vontade, era composto por brilhos, holofotes, paetês, saltos altos, cílios e maridos postiços, naquela atmosfera em que qualquer Geni que passasse por ali seria apedrejada. Entramos quietos, naturalmente espantados, quando disse ao meu pai:


- Será que o Chico imaginava que teria esse público...
- ...quando começou a carreira?

Rimos irônicos e um pouco nervosos. A minha má consciência volta e meia sussurrava no meu ouvido comentários do tipo “será que esse pessoal realmente ouve Chico Buarque em casa?” A boa consciência apenas se limitava a dizer: “Ai, Tatiana, que feio”.


O show foi realmente desenhado para um tipo de público como aquele. Uma grande produção, jogo de luzes, o Chico sentado num banquinho anatômico com pezinho e encosto, cantando predominantemente músicas de amor, tudo muito asséptico e civilizado. Mas ainda assim era o Chico. A mim, a emoção de ver um mito ainda vivo, ainda sadio e - graças a deus - ainda uma virtuose. E consegui transpor a imagem daquele simulacro todo e vislumbrar a atmosfera daqueles anos tortuosos, do vigor e da coragem de ser uma das vozes da resistência com todo o lirismo que lhe cabe. E vi ali, diante de mim, o suprassumo da brasilidade, quando se revelou acompanhado de uma banda que mesclava piano, contrabaixo acústico, atabaque, saxofone, cavaquinho, flauta transversa e teclados eletrônicos, emoldurada por enormes painéis com obras de Niemeyer e Portinari.


A noite teve sim ares de espetáculo. Mas vi também que o mito às vezes cansa de ser ser mito e passa a querer se dar os luxos do fruto colhido ao longo desses anos históricos, compreendendo que os tempos agora são outros. E com toda razão.

Show do Chico: as pérolas


Antes do show começar, o locutor adverte:

- Senhoras e senhores, por gentileza, desliguem seus aparelhos eletrônicos. Foto e filmagens serão permitidas apenas mediante autorização prévia.

Quando o Chico entra no palco, alguém gritaria:

- CHICOOO, POSSO FILMAR??


(Essa é do meu pai)



****




Chico Buarque, agora mais franzino que nunca, aquela passa de gente, ao terminar uma música, ouve da plateia:

- LINDOOOO!!!




****




Na saída do show, no meio de toda a gente, ouço atrás de mim uma senhora dizer pra outra:

- Pegaste o ticket do estacionamento, Geni?




(Essas outras realmente aconteceram)

domingo, 9 de outubro de 2011

Tema para perfil de rede social

Não sei ser poser, não sei ser hype. Gosto de orquídeas, do Cortázar, dos quadros do Pollock, de um bom vinho e dou um braço pra ficar na minha. Quanto mais luz há perto de mim, mais estou na sombra. Tou dentro do sistema porque preciso pagar minhas contas e minhas pequenas concessões, mas não tou na moda. Tenho minha vaidade, amparada por alguns artificialismos, mas sou eu que pinto minhas unhas. Tenho minhas crenças mas não sou sócia de nenhum clube. Sou mais a palavra bem-dita do que a imagem vazia, mas não tenho citação bonita pra um testemunho virtual. E se essa sou eu, amanhã posso bem não ser.

segunda-feira, 15 de agosto de 2011

terça-feira, 2 de agosto de 2011

A máquina da máquina



Durante uma atividade proposta em sala de aula, rola o seguinte diálogo:

ALUNO: ...e o que teu pai faz?

ALUNA: Meu pai vende máquina.

ALUNO: Máquina?! De quê?

ALUNA: De fazer máquinas!

ALUNO: ( ! )

...

ALUNO: Tá, e que mais que teu pai faz?

ALUNA: Ele também vende peças.

ALUNO: Peças do quê?

ALUNA: ... das máquinas que servem pra fazer outras máquinas!

sábado, 30 de julho de 2011

O que ficou da leitura de "O morro dos ventos uivantes", de Emily Bronte.



Se há o que aprender com a literatura - sobretudo a boa literatura - é viver. Aprender a aprender. Aprender a simplesmente sentir, pular as convenções, dar-se o luxo de ser simplesmente matéria humana. E esse é meu encantamento pela literatura: a palavra metafórica sempre se renova e, ao longo da leitura de uma história incrível, me impressiono com a maneira como simples códigos decifrados tomam forma e interferem na reinvenção das minhas próprias experiências.

Do que fica nessa vida

Me resta a memória dos livros que li agora.
Meus personagens de lata, minhas paragens inóspitas, minhas imagens secretas
Meus vãos.
Minhas nuvens de sangue, meu choro vago
O riso convulso de quem de fato não existe
A morte que simplesmente morre
A noite 
O mar 
A exatidão das minhas frestas.

terça-feira, 12 de julho de 2011

O gigante

"É preciso ser leve como um pássaro, não como uma pluma".
(Paul Valéry)
O recomeço
É um gigante no escuro
Que quando vem a luz
Estampa um sorriso vacilante
Entre a timidez da incerteza
E a expectativa da possibilidade.

Recomeço pois
A passos miúdos
Descobrindo que as pedras se movem
Ao longo do caminho
E o gigante - companheiro orelhano
É meu anjo sem asa
Sem fé
Sem rosto.

domingo, 10 de julho de 2011

Retornando aos poucos



Tu peux naître au bon endroit
Avec une mère qui t'aime
Un père qu'est là
Une famille entière autour de toi
Un amour sincère pour guider tes pas
Tu peux naître orphelin
Dans un endroit synonyme de rien
Avec un quignon de pain pour destin
Et en horreur le genre humain
Mais...
C'que tu fais
C'est ta réalité
C'que tu fais
C'est ta réalité
Tu peux être soudanais
Entre la charia et l'armée
Voir ton avenir enchaîné
A ce système que tu hais
Alors tu vis ta vie
D'un trait
Sans savoir qui tu es
Avec pour seul fait
Ta misère et ta mosquée
Tu peux être soudanais
Entre la charia et l'armée
Être prêt à prendre des coups de fouet
Parce que tes dreadlocks ont poussé
Te boire une rebiè
T'évader à danser
En sachant que c'que tu fais
Pourrait t'emprisonner
Tu peux vivre
Une cité pourrie
Avec ton pitt et tes amis
Ton hall, ta "8-6", ton te-shi
Et la police comme seule ennemie
Tu peux vivre
Une cité pourrie
Avec ton week-end comme seul ami
Ces deux jours sacrés pour une autre vie
Prendre le temps de bouger
Trouver tes envies
Tu peux tabasser tes gosses
Entre ta femme et ton divorce
Tu peux trouver la vie si féroce
Qu'alors tu baignes tu passes en force
Tu peux ne pas faire d'enfant
Te dire qu'être père
Ca prends du temps
Revoir ta vie d'adolescent
Et pas refaire
C'qu'ont fait tes parents
Tu peux choisir la musique
Avoir un père directeur artistique
Connaître Santi et ses indics
Qui feront de toi
Une star académique
Tu peux choisir la musique
Pour avancer pour que ça communique
Prendre en chemin le monde artistique
Pour lui garder sa fierté mystique

sábado, 19 de março de 2011

Achados

Mexer em gaveta velha sempre rende boas lembranças. Mas o engraçado foi agora encontrar, depois de mais de dez anos, um caderno de poesias. Velhas. Ingênuas. E o que me surpreendeu não foi nem isso, mas sim encontrar, nesse caderno uns poucos textos em prosa que escrevi... Não tenho o menor registro deles na minha memória, mas enfim.

Segue um deles, bizarro, atemporal, mal-escrito e quase apócrifo, não fosse a identificação da minha caligrafia. Não que eu seja uma Alfonsina Storni da vida, uma Florbela Espanca, ou mesmo uma Clarice Lispector hoje em dia, mas pelo visto o tempo fez um bem pras minhas palavras...

"Ele já sem forças naquela cama asséptica do hospital, olhando para as paredes do quarto assépticas, procura a luminosidade do sol que entra pelos frisos da janela. Vira-se para Ela que, sentada na poltrona auxiliar, tece os últimos fios daquilo que, sem saber, seria sua própria mortalha numa manhã cancerosa de outono.

"Enfim, casaste com meu dinheiro, não foi? Ela, impávida, dirige a ele um sorriso frio e já exausto. Volta para suas agulhas. Agora só falta dizer que nunca havias pensado nisso, o que é isto, estás ficando maluco. Mas eu bem sei, suportaste a vida ao meu lado, calada, casada comigo e amancebada com meu dinheiro.

"Ela já não levanta os olhos a ele. Apenas suspira e segue seu tramar. Ele, cansado e fraco, dá um gemido estertoroso sem perceber o movimento da mulher, que apaga a luz da cabeceira, acrescenta mais uma dose de morfina no soro dele e vai embora dizendo entre os dentes: velho escroto".

domingo, 20 de fevereiro de 2011


Inspirada no texto do excelente blog da Anne, posto aqui uma das inúmeras pérolas que ouço em sala de aula, a título de comemorar o retorno, o eterno retorno.


PROFESSORA: Os poetas do Mal-do-século eram boêmios de carteirinha...

TURMA: (sussurros) Uau, que legal!

PROFESSORA: Passavam dias e noites bebendo nas tavernas...

TURMA: (sussurros) Esses sabiam das coisas!

PROFESSORA: Mas, como vocês sabem, o álcool diminui significativamente a quantidade de vitamina C no corpo, o que deixa a imunidade vulnerável. Assim, eles morriam muito cedo por causa de tuberculose e de doenças venéreas...

(Silêncio na turma)

PROFESSORA: ... bom, quanto à poesia dessa época, podemos ver a presença de hipérboles e outras figuras de linguagem. Alguma dúvida?

ALUNO: Tá, sora, então é só tomar um comprimido de vitamina C no outro dia que tá beleza?

terça-feira, 8 de fevereiro de 2011

De Tucuruvi a Jabaquara (linha azul)

"São Paulo" (1924), de Tarsila do Amaral

Desço do metrô
Na dança ritmada dos passos apressados
São Paulo é formigueiro em profusão
Onde tudo acontece e onde nada se percebe.

Sou turista entre trabalhadores incansáveis
Consumo as ruas da cidade, souvenires de concreto
Sugo suas vielas, as avenidas, os museus,
A música incidental que vem dos ônibus,
A Paulista com a Augusta,
Os bares na Vila Madá, suas galerias obscuras,
Seus outdoors, o inusitado.

Quero beber o fluido que corre
Do seu amanhecer apressado
Sou turista no mercado municipal
Entre nordestinos, gaúchos, orientais
Essencialmente paulistanos
E sorvo dessa essência
Minha alma rapidamente entende e se adapta
Quer agregar, quer entranhar, conhecer.

Ainda que encantada,
Com os olhos cheios desse alvorecer colorigo e amargo,
Com o coração dividido
Entre a Ipiranga e a avenida São João,
Volto simplesmente por não pertencer.

segunda-feira, 24 de janeiro de 2011

Cinismo calviniano



Sou uma fã inveterada do Calvin, e hoje minha amiga Pati Pilla postou no Facebook um link pra uma frase dele. Dificilmente sigo esses links, pois tenho uma certa preguiça com referências de redes sociais; mas como era Calvin - e como era a Pati -, fui conferir. E encontrei um verdadeiro e delicioso tesouro virtual: Frases do Calvin. Abaixo, seguem algumas das pérolas extraídas do blog:


"O problema das pessoas é que elas são apenas humanas".

"Eu só perdi um jogo idiota, mas meu espírito permanece invencível".

"Nunca consigo fazer todo o 'Nada' que quero". (É o que sempre penso quando terminam as férias).

"Quando você pensa como uma torradeira trabalha 'bem' queimando seu pão, fica difícil acreditar que alguém ainda pegue avião". (Bem alentador ler isso três dias antes de embarcar num...)

"Se não ganhar um beijo de boa-noite, eu acabo tendo sonhos kafkianos". (Imaginação com doçura).

"Eu sei que a vida é uma jornada, mas eu estou cansado de perder tempo no trânsito". (Da burocracia da vida).

"Para estragar o prazer de uma brincadeira, nada como descobrir que foi educativo". (Reflexão assaz importante pra uma professora preocupada em tornar suas aulas sempre mais interessantes).

"É muito mais divertido culpar as coisas em vez de arrumá-las".

"Na minha opinião, nós não desenvolvemos pesquisas científicas suficientes para encontrar a cura para os idiotas".

"Faça o que tem que fazer e deixe os outros discutirem se é certo ou não". (Artistas versus críticos?)

"Matemática não é uma ciência, mas uma religião, pois os números se transformam como num milagre e você simplesmente tem que aceitar". (Haha, sempre tive essa impressão na época do colégio).

quarta-feira, 19 de janeiro de 2011

Caixa de surpresas


Por muito tempo
Pandora escondeu
De si mesma
O segredo da humanidade.

Numa noite de primavera
Saiu do seu ninho
Tomou sem rumo uma estrada qualquer
Bebeu vinho
Dançou com um pajé
Pés plantados na terra.

E quando na sua embriaguez acreditara
Que já não havia mais
O que descobrir,
Encontrou uma pequena gruta
Incrustada no solo onde dançara horas antes.

E nessa gruta
Encontrou a semente
De todos os males do mundo.

sábado, 15 de janeiro de 2011

quarta-feira, 12 de janeiro de 2011

"A dor é inevitável. Sofrer é opcional" (Haruki Murakami)

Haruki Murakami

Muitas vezes a gente tende a ignorar alguns singelos sinais que aparecem ao longo da vida. Coincidência ou não, eles surgem em diferentes dimensões, em diferentes esferas - mas nos momentos exatos.

Tendo acabado a leitura de O grande Gatsby, recebi de um amigo querido a indicação do livro Do que eu falo quando eu falo em corrida, de Haruki Murakami (ed. Alfaguara). Comecei a leitura por gostar muito de correr, mas confesso que não coloquei muita expectativa, pois andava mais no clima de ler literatura. Fui surpreendida então por dois fatores: o primeiro é que Murakami é um romancista japonês de prestígio, lido no mundo todo (adoro essas descobertas). E o segundo é que ele traduziu - justamente - O grande Gatsby para o japonês.

O livro então resulta num registro pra lá de sensível e filosófico sobre as inúmeras relações que há entre correr e escrever ficção. Contando como se tornou um corredor e um escritor, o autor reflete sobre motivação, sobre o processo de pensamento de quando se corre e quando se escreve, sobre limites... Mas sobretudo trata da arte de ficar sozinho e da sua relação com o tempo - seja o tempo dos treinos, das provas, seja o tempo da sua própria existência. E falando em existência, Murakami nos ensina a contemplar tanto o que está ao alcance dos olhos - como quando descreve o que observa ao longo das corridas - como o que não é possível ver, mas sentir: o nosso quinhão humano, a nossa parte dentro de um ciclo, os nossos próprios ciclos, a noção que adquirimos da nossa própria fluidez. Nesse sentido, o autor nos revela que os atos de correr e de escrever romances portam duas forças antagônicas e complementares: assim como o corredor pode por vezes desfrutar de uma sensação de poder - e o cruzamento de uma linha de chegada pode traduzir isso -, o escritor pode por vezes brincar de deus, uma vez que o domínio da palavra e da narrativa lhe permite criar quantos mundos desejar. Mas o outro lado também mostra que, assim como o corredor pode por vezes se sentir falível, sabendo que não tem pleno controle sobre o corpo e sabendo que esse corpo perece, o escritor lida com a matéria humana, ambivalente e conflituosa, logo, imperfeita.

E é cultivando com muita concentração e perseverança essas duas práticas - uma que mantém o corpo são e a outra que assim mantém a mente - que Haruki Murakami também nos mostra que, dentro da lógica do tempo, há uma construção muito bonita da noção de individualidade, dado que, para desenvolvê-las com competência, é preciso gostar de estar sozinho. Estando sozinho é possível ouvir os próprios pensamentos, entender o tempo e consequentemente amadurecer, transformando a própria realidade. E uma dessas transformações incríveis pela qual passou nosso autor foi abrir mão do hábito de fumar 60 cigarros por dia.

Desse livro, ficou para mim uma série de reflexões, mas, de acordo com a leitura que fiz, existe uma que poderia resumir a obra: correr e escrever é sobretudo lidar com o invisível: com os tempos, com a paciência, com os processos, com os resultados inesperados, com o deleite e com a dor.

***

Abaixo seguem alguns trechos para degustação:

"Acho que a coisa mais afortunada de todas foi que nasci com um corpo forte e saudável." (p. 39)


"Tenho apenas alguns motivos para continuar a correr, e um caminhão deles para desistir. Tudo que tenho a fazer é manter esses poucos motivos muito bem-cuidados." (p. 66)

"No meio desse fluir, tenho consciência de mim mesmo como uma minúscula peça no gigantesco mosaico da natureza. Sou apenas um fenômeno natural substituível, como a água do rio que corre sob a ponte na direção do mar" (p. 81)

"Quando paramos para escrever um romance, quando usamos a escrita para criar uma história, queiramos ou não, um tipo de toxina que jaz nas profundezas de toda a humanidade sobe à superfície" (p. 85)

"Correr adentrara o território da metafísica. Primeiro vinha a ação de correr, e acompanhando-a estava essa entidade conhecida como eu. Corro, logo existo." (p. 99)

"Olho para o céu, perguntando-me se dá para entrever alguma bondade ali, mas não. Tudo que vejo são as indiferentes nuvens de verão vagando através do Pacífico. E elas não têm nada a me dizer. Nuvens são sempre taciturnas. Provavelmente, eu não deveria estar olhando para elas. Deveria era estar olhando dentro de mim. Como que fitando um poço fundo. Posso ver bondade ali dentro? Não, tudo que vejo é minha própria natureza." (p. 128)

"Um dos privilégios concedidos àqueles que evitaram morrer jovens é o direito abençoado de ficarem velhos." (p. 105)

sexta-feira, 7 de janeiro de 2011

R$30,00 valem a madrugada?




Quinta-feira, 23:55, diálogo entre casal que se sucede dentro do carro:

Ele: Como assim, "estraguei teu liquidificador"?

Ela: Sim, benzinho, depois que tu colocaste superbonder, o troço só funciona se a gente fica com a mão em cima!

Ele: Ah, injusto isso! A batida de banana que eu fiz depois do conserto ficou ótima.

Ela: Mas fez um barulhão...

...

...

Ele: Nossa! Olha o tamanho da fila pro torra-torra de amanhã do Magazine Luísa! Eles vão passar a noite toda aqui só pra comprar eletrodoméstico?!...

...

Ela: Mas bem que tu tá me devendo um liquidificador!

quarta-feira, 5 de janeiro de 2011

O grande Gatsby, de F.S. Fitzgerald

Scott Fitzgerald

Tenho um preconceito bobo que obviamente não se sustenta: sempre que vou ler alguma obra norte-americana, torço o nariz. Me cheira a pedantismo, a invenção de moda, a sectarismo, enfim. Mas o engraçado é que, do pouco que já li da literatura yankee, gostei de tudo, he. Bukowski, John Fante, Allen Ginsberg, Hemingway, Salinger... e acredito que ainda me falta ler Truman Capote, John dos Passos, entre tantos outros.

E com F. Scott Fitzgerald foi o mesmo ranço, que ironicamente durou até a primeira linha de “O grande Gatsby”, que dizia: “Em meus anos mais juvenis e vulneráveis, meu pai me deu um conselho que jamais esqueci: ‘Sempre que você tiver vontade de criticar alguém, lembre-se de que criatura alguma nesse mundo teve as vantagens de que você desfrutou’”. Me chamou pra leitura, então. E o livro, narrado pela personagem Nick Carraway, vai falar do american dream vivido pela juventude dos anos 20, pós-Primeira Guerra. Em época de lei seca, a sede de viver dos jovens abastados era saciada pela atmosfera de jazz, coupés e festas privadas regadas sim a uísque, champanha e vestidos de soirée.

Pela voz de Carraway, Fitzgerald desconstrói então a imagem desse sonho americano. Ou melhor, aproxima-se dessa grande tela pintada com aparente perfeição para observar o traço do pincel, a impureza da tinta e das combinações de cores. Assim, revela para o leitor que aquilo que é muito idealizado não se sustenta, pois há gente de carne e osso que sonha. Gente falível, vulnerável, gente solitária, gente agressiva, sensitiva, dominadora e ao mesmo tempo frágil. E um castelo feito dessa areia acaba sempre cedendo.

Mas sempre houve, na literatura universal, histórias de castelos de areia, de aparências difíceis de serem mantidas dado a natureza humana das personagens. E nesse sentido, acredito que há dois aspectos fundamentais que tornam “O grande Gatsby” um clássico: o primeiro é o quadro que se faz de uma época e de um local, um zeitgeist – e a descrição dos bailes na mansão de Jay Gatsby não pode ilustrar melhor. O segundo, que pra mim é o mais genial de todos por ser complexo, são as relações aparentemente frívolas e passageiras que, quando entendidas, adquirem uma tensão constante, uma corda esticada, que se rompe não só com uma tragédia, mas com a tragédia das constatações do que, afinal, realmente constitui os jovens que vivem esse sonho americano.

Nesse sentido, haveria muito do que se falar de cada personagem, mas acho que por agora está bom. Pra encerrar, seguem abaixo dois trechos da obra (ambos do capítulo VI) que pra mim representam essa fragilidade humana, o desejo – e o medo – ocultos de que algo verdadeiro venha a acontecer, e a incapacidade de comunicar o que há de profundo e genuíno. Deve-se dar um desconto à tradução, que é sofrível (edição da coleção da Folha de São Paulo).

“Seu olhar desviou-se de mim e buscou o topo da escadaria iluminada, por onde os sons de Three o’clock in the morning, uma pequena valsa triste, delicada, daquele ano, saíam, flutuantes, pela porta aberta. Afinal de contas, na própria casualidade da festa de Gatsby existiam possibilidades românticas inteiramente ausentes de seu mundo. Que é que havia naquela canção, que parecia chamá-la de volta à casa de Gatsby? Que aconteceria agora, naquelas horas vagas, incalculáveis? Talvez chegasse algum conviva inacreditável, alguma pessoa rara, diante da qual as pessoas ficassem maravilhadas, alguma jovem autenticamente radiosa, que, com um simples olhar a Gatsby, um momento de encontro mágico, apagaria aqueles cinco anos de perseverante devoção”.

“Em meio de tudo o que ele disse – e até mesmo em meio de sua espantosa sentimentalidade –, eu recordava algo... um ritmo fugitivo, um fragmento de palavras perdidas, que eu ouvira, havia muito, algures. Por um momento, uma frase procurou formar-se em minha boca, e meus lábios se entreabriram como os de um mudo, como se houvesse neles maior esforço do que poderia produzir um súbito sopro de ar. Mas não produziram som algum – e aquilo de que quase me lembrei permaneceu para sempre incomunicável”.

domingo, 2 de janeiro de 2011

Asas às iluminuras


Cornelius Escher. Sempre meu preferido, não adianta.

Há uma peculiaridade na minha vida pessoal que me frustra um pouco, talvez por dizer respeito, de certa forma, à minha escolha profissional: minha memória para as leituras de lazer.

Tenho o hábito de ler com um lápis na mão, fazendo marcações, tomando notas nas margens das páginas, deixando pedras pelo caminho, de modo que o livro em questão passa a adquirir ares de edições medievais, tamanha a quantidade de rabiscos que se põem como verdadeiras iluminuras. Mas quando quero me lembrar de algo – uma passagem mais precisa, uma imagem, uma citação – é preciso sempre que eu volte ao livro e comece a catar a parte que me interessa, o milho bom, a agulha no palheiro. E é preciso, para isso, bastante paciência. E quando a necessidade da pesquisa resume-se à satisfação momentânea de resolver uma dúvida surgida num bate-papo qualquer, a própria ideia dessa busca adquire uma dimensão hercúlea que me afasta do livro. E me frustra.

Após terminar a primeira leitura do ano de 2011, “O grande Gatsby”, de Scott Fitzgerald (viva as férias), fui à Internet atrás de informações acerca da obra, que realmente é um achado. Mas o que acabei achando, também, foi um blog que traz uma ideia que eu sempre quis por em prática, e no entanto sempre me faltou... iniciativa: escrever sobre cada livro lido. Alguma coisa. Minhas impressões, minhas sensações, enfim, resenhas que possam ir um pouco além do gênero.

Entre tantas outras, acabo de agregar essa às minhas resoluções de ano novo, e desejo, nesse presente, mantê-la. De início, escreveria apenas pra mim mesma, para manter registros que refresquem de imediato minha memória cada vez que fosse preciso; mas pensei também: “por que não compartilhá-los?” Não que eu transforme a ideia do meu blog nisso, mas que ele seja um espaço pra esse tipo de texto também.

Vou começar, portanto, por “O grande Gatsby”, obra grandiosa. Para quem tiver saco de acompanhar, aguardem.