terça-feira, 21 de dezembro de 2010

Zero grau de libra - pequenas epifanias



Apesar de agora não estarmos no zero grau de libra, acho que esse texto cai como uma luva pra um fim de ano. (Também foi lembrado em função de uma conversa muito boa que tive com gente muito boa acerca do que é, afinal, Deus.) É um dos meus textos preferidos.

       "Sobre todos aqueles que continuam tentando, Deus, derrama teu Sol mais luminoso.

       "O Sol entrou ontem em Libra. E porque tudo é ritual, porque fé, quando não se tem, se inventa, porque Libra é a regência máxima de Vênus, o afeto, porque Libra é o outro (quando se olha e se vê o outro, e de alguma forma tenta-se entrar em alguma espécie de harmonia com ele), e principalmente porque Deus, se é que existe, anda destraído demais, resolvi chamar a atenção dele para algumas coisas. Não que isso possa acordá-lo de seu imenso sono divino, enfastiado de humanos, mas para exercitar o ritual e a fé - e para pedir, mesmo em vão, porque pedir não só é bom, mas às vezes é o que se pode fazer quando tudo vai mal.

       "Nesse zero grau de Libra, queria pedir a isso que chamamos de Deus um olho bom sobre o planeta terra, e especialmente sobre a cidade de são Paulo. Um olho quente sobre aquele mendigo gelado que acabei de ver sob a marquise do cine Majestic; um olho generoso para a noiva radiosa mais acima. Eu queria o olho bom de Deus derramado sobre as loiras oxigenadas, falsíssimas, o olho cúmplice de Deus sobre as jóias douradas, as cores vibrantes. O olho piedoso de Deus para esses casais que, aos fins de semana, comem pizza com fanta e guaraná pelos restaurantes, e mal se olham enquanto falam coisas como: "você acha que eu devia ter dado o telefone da Catarina à Eliete? – e outro grunhe em resposta.

       "Deus, põe teu olho amoroso sobre todos que já tiveram um amor, e de alguma forma insana esperam a volta dele: que os telefones toquem, que as cartas finalmente cheguem. Derrama teu olho amável sobre as criancinhas demônias criadas em edifícios, brincando aos berros em playgrounds de cimento. Ilumina o cotidiano dos funcionários públicos ou daqueles que, como funcionários públicos, cruzam-se em corredores sem ao menos se verem – nesses lugares onde um outro ser humano vai-se tornando aos poucos tão humano quanto uma mesa.

       "Passeia teu olhar fatigado pela cidade suja, Deus, e pousa devagar tua mão na cabeça daquele que, na noite, liga para o CVV. Olha bem o rapaz que, absolutamente só, dez vezes repete Moon Over Bourbon Street, na voz de Sting, e chora. Coloca um spot bem brilhante no caminho das garotas performáticas que para pagar o aluguel tão duro como garçonetes pelos bares. Olha também pela multidão sob a marquise do Mappin, enquanto cai a chuva de granizo, pelo motorista de taxi que confessa não Ter mais esperança alguma. Cuida do pintor que queria pintar, mas gasta seu talento pelas redações, pelas agências publicitárias, e joga tua luz no caminho dos escritores que precisam vender barato seu texto- olha por todos aqueles que queria ser outra coisa qualquer a que não a que são, e viver outra vida se não a que vivem.

       "Não esquece do rapaz viajando ônibus com seus teclados para fazer show na Capital, deita teu perdão sobre os grupos de terapia e suas elaborações da vida, sobre as moças desempregadas em seus pequenos apartamentos na Bela Vista, sobre os homossexuais tontos de amor não dado, sobre as prostitutas seminuas, sobre os travestis da República do Líbano, sobre os porteiros de prédios comendo sua comida fria nas ruas dos Jardins. Sobre o descaramento, a sede e a humildade, sobre todos que de alguma forma não deram certo (porque, nesse esquema, é sujo dar certo), sobre todos que continuam tentando por razão nenhuma – sobre esse que sobrevivem a cada dia ao naufrágio de uma por uma das ilusões.

       "Sobre as antas poderosas, ávidas de matar o sonho alheio- Não. Derrama sobre elas teu olhar mais impiedoso, Deus, e afia tua espada. Que no zero grau de Libra, a balança pese exata na medida do aço frio da espada da justiça. Mas para nós, que nos esforçamos tanto e sangramos todo dia sem desistir, envia teu Sol mais luminosos, esse zero grau de Libra. Sorri, abençoa nossa amorosa miséria atarantada".

Caio Fernando Abreu - O Estado de S. Paulo, 24/09/86.

6 comentários:

  1. Realmente um belo texto... Esse assunto traz sempre um bom papo.
    Quem são os Deuses na ordem das coisas? Achei muito legal a parte onde diz que Libra é o outro...é o afeto... E como disse Pessoa, é o Sol, a árvore, o pássaro. A gente acaba sempre querendo entrar em harmonia com esse mundo que nos cerca. Seria essa uma busca pelo sentimento verdadeiro, pelo incondicional, pelo próprio entendimento? O Caio foi muito feliz ao escrever esse texto. E que continuemos sempre buscando alguma coisa!
    Feliz Natal Tati!

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  3. É, Igor. E cada vez me convenço mais de que a gente não busca Deus, mas de que ele é essa própria busca.

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  4. Curiosidade pela conversa sobre Deus. apesar do ateísmo que me tomou nos últimos 10 anos, essas buscas sempre me interessam.
    belo texto
    beijokas

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  5. Adoro os textos do Caio são tão profundos e tão chocantes de verdadeiros. Coincidentemente, estou relendo alguns contos dele. Sempre tem um texto que se encaixa com o que se procura. Bjo!

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  6. Hehe, que legal, Dri! Eu também amo os textos dele.

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