terça-feira, 22 de junho de 2010

Ensaio sobre o legado


Demorou pra me cair a ficha de que Saramago morreu. Ele, que já cogitara (em um desses exercícios de abstração fabulosos que só o texto ficcional permite) uma situação em que a morte tira umas férias.

Já era um clássico, e talvez por isso meu espanto com a sua ida: esses seres morrem? Têm fibras? Carne? Osso? Fazem compras, vão ao banheiro, irritam-se com serviço de telemarketing? Saramago foi controverso, político, antipático, imperfeito. Mas esse era o homem-da-rotina, o que usava cuecas, água-de-cheiro. Se essa não é a face do autor (e sim da pessoa), ao menos Saramago era um clássico que tinha um blog e que dava depoimentos em documentários. Com oitenta e sete anos.

E com oitenta e sete anos ainda estava publicando livro (por sinal, o último livro que li nas minhas férias, “Caim”). Logo se vê que o corpo se aposenta, mas a mente se fortalece com o tempo. E com a morte, a palavra é somente o que permanece.

A herança que o autor deixa se inventaria nas imagens que cada leitor cria. Eu mesma posso dizer que estive cega naquele hospital supervisionado por futuros-cegos; sofri os dramas existenciais de Jesus, parti em busca da maior flor do mundo, tornei-me atrapalhadamente imortal e atravessei mitos bíblicos com Caim. Se eu pudesse dizer ao menos uma palavra para esse homem-condão que morreu sem saber da minha existência, lhe agradeceria cada momento que vivi nas suas histórias que, sem dúvida, atravessarão os tempos.

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