Scott Fitzgerald |
Tenho um preconceito bobo que obviamente não se sustenta: sempre que vou ler alguma obra norte-americana, torço o nariz. Me cheira a pedantismo, a invenção de moda, a sectarismo, enfim. Mas o engraçado é que, do pouco que já li da literatura yankee, gostei de tudo, he. Bukowski, John Fante, Allen Ginsberg, Hemingway, Salinger... e acredito que ainda me falta ler Truman Capote, John dos Passos, entre tantos outros.
E com F. Scott Fitzgerald foi o mesmo ranço, que ironicamente durou até a primeira linha de “O grande Gatsby”, que dizia: “Em meus anos mais juvenis e vulneráveis, meu pai me deu um conselho que jamais esqueci: ‘Sempre que você tiver vontade de criticar alguém, lembre-se de que criatura alguma nesse mundo teve as vantagens de que você desfrutou’”. Me chamou pra leitura, então. E o livro, narrado pela personagem Nick Carraway, vai falar do american dream vivido pela juventude dos anos 20, pós-Primeira Guerra. Em época de lei seca, a sede de viver dos jovens abastados era saciada pela atmosfera de jazz, coupés e festas privadas regadas sim a uísque, champanha e vestidos de soirée.
Pela voz de Carraway, Fitzgerald desconstrói então a imagem desse sonho americano. Ou melhor, aproxima-se dessa grande tela pintada com aparente perfeição para observar o traço do pincel, a impureza da tinta e das combinações de cores. Assim, revela para o leitor que aquilo que é muito idealizado não se sustenta, pois há gente de carne e osso que sonha. Gente falível, vulnerável, gente solitária, gente agressiva, sensitiva, dominadora e ao mesmo tempo frágil. E um castelo feito dessa areia acaba sempre cedendo.
Mas sempre houve, na literatura universal, histórias de castelos de areia, de aparências difíceis de serem mantidas dado a natureza humana das personagens. E nesse sentido, acredito que há dois aspectos fundamentais que tornam “O grande Gatsby” um clássico: o primeiro é o quadro que se faz de uma época e de um local, um zeitgeist – e a descrição dos bailes na mansão de Jay Gatsby não pode ilustrar melhor. O segundo, que pra mim é o mais genial de todos por ser complexo, são as relações aparentemente frívolas e passageiras que, quando entendidas, adquirem uma tensão constante, uma corda esticada, que se rompe não só com uma tragédia, mas com a tragédia das constatações do que, afinal, realmente constitui os jovens que vivem esse sonho americano.
Nesse sentido, haveria muito do que se falar de cada personagem, mas acho que por agora está bom. Pra encerrar, seguem abaixo dois trechos da obra (ambos do capítulo VI) que pra mim representam essa fragilidade humana, o desejo – e o medo – ocultos de que algo verdadeiro venha a acontecer, e a incapacidade de comunicar o que há de profundo e genuíno. Deve-se dar um desconto à tradução, que é sofrível (edição da coleção da Folha de São Paulo).
“Seu olhar desviou-se de mim e buscou o topo da escadaria iluminada, por onde os sons de Three o’clock in the morning, uma pequena valsa triste, delicada, daquele ano, saíam, flutuantes, pela porta aberta. Afinal de contas, na própria casualidade da festa de Gatsby existiam possibilidades românticas inteiramente ausentes de seu mundo. Que é que havia naquela canção, que parecia chamá-la de volta à casa de Gatsby? Que aconteceria agora, naquelas horas vagas, incalculáveis? Talvez chegasse algum conviva inacreditável, alguma pessoa rara, diante da qual as pessoas ficassem maravilhadas, alguma jovem autenticamente radiosa, que, com um simples olhar a Gatsby, um momento de encontro mágico, apagaria aqueles cinco anos de perseverante devoção”.
“Em meio de tudo o que ele disse – e até mesmo em meio de sua espantosa sentimentalidade –, eu recordava algo... um ritmo fugitivo, um fragmento de palavras perdidas, que eu ouvira, havia muito, algures. Por um momento, uma frase procurou formar-se em minha boca, e meus lábios se entreabriram como os de um mudo, como se houvesse neles maior esforço do que poderia produzir um súbito sopro de ar. Mas não produziram som algum – e aquilo de que quase me lembrei permaneceu para sempre incomunicável”.
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